A convite do Nespe, editora Raquel Menezes imagina um futuro em que a IA substituiu editores, jurados de prêmios literários e outros profissionais do setor. Leia o conto abaixo:
Naquele zumbido poliglota que mistura café, espanhol, bad english e promessas de direitos autorais, Ana mirou Carla no estande vizinho. Cercadas de livros como quem organiza um exército, as duas se entreolharam. “Olha só quem veio fazer diplomacia editorial!”, brincou Carla, equilibrando uma xícara e uma pilha de catálogos. A outra virou-se com um sorriso estratégico e disse: “Vim garantir que os autores brasileiros não sejam trocados por algoritmos.” Ambas riram. Tinham o mesmo olhar de quem já atravessou marés de modismos literários e editou livros que fizeram mais barulho do que vendagem.
Com o tom ironicamente mineiro, ou seja, com gostinho de pão de queijo quente recheado de farpa, soltou “Ouviu falar do novo prêmio?”. “O Prêmio de Literatura Algorítmica Latino-Americana?”, respondeu Ana. “Dizem que o júri é uma IA também”, disse entre um risinho e uma cara de desgosto. “É até bem coerente… Um robô premiando outro robô. No ano que vem, talvez a entrega seja feita por um drone.”, disse a editora que entende de editar bruxinhos. Sem ar, de tanto rir, Carla soltou “o que me intriga é: quem vai escrever o discurso de agradecimento?”. Ana, com seu olhar matador, com o queixo na mão, retrucou “O ChatGPT já tem um modelo pronto: ‘agradeço ao meu processador por acreditar em mim desde a versão beta’”
Riram tanto que o editor do estande de Portugal olhou desconfiado.
“Papo reto!”, continuou Ana, enquanto ajeitava o crachá, “acho que a IA pode até ajudar, mas livro bom continua sendo obra de gente viva. Gente que sofre, que tem dúvidas, que erra o título e reescreve.” Ana complementou “ó que, veja bem, a máquina nunca vai sentir o desespero de um fechamento de livro”. Ana, teatralmente suspirou, “Nem o prazer de cortar um adjetivo inútil.”
O alto-falante anunciou uma mesa sobre “O futuro da edição automatizada”. As duas se entreolharam. “Vamos”, perguntou Carla. “Bora”, respondeu Ana no mesmo tempo de pegar seu bloquinho.
“Quero ver o futuro tentar me convencer de que tem mais bom humor do que eu.”, pensaram as duas.
Ativista do livro e editora há mais de 10 anos, Raquel Menezes é formada em Letras pela UFRJ, onde também concluiu mestrado e doutorado. Foi presidente da Libre – Liga Brasileira de Editoras Independentes e finalista do Prêmio Jovens Talentos da Indústria do Livro (PublishNews), destacando-se como uma das vozes mais atuantes na defesa da bibliodiversidade e do fortalecimento das editoras independentes no Brasil.


